Criptomoedas e Moedas Digitais de Bancos Centrais: O Futuro Incerto do Dinheiro

 | 10.11.2021 16:11

Em julho de 1944, representantes das principais economias do mundo se reuniram no Mount Washington Hotel, no encontro que ficou conhecido como a “A Conferência de Bretton Woods”. O objetivo central da reunião era a regulamentação do sistema monetário internacional após a conclusão da II Guerra Mundial. Um dos principais resultados da conferência foi a definição de que as taxas de câmbio entre as moedas das maiores economias do mundo seriam fixas, com a possibilidade de correções controladas, e que o dólar dos Estados Unidos seria a moeda de referência, tendo sua emissão limitada pelos estoques de ouro. A taxa de conversão definida foi de US$ 35,00 por onça troy de ouro, no regime conhecido como “padrão-ouro” (ou padrão dólar-ouro, já que o dólar estava lastreado em ouro e todas as principais moedas do mundo estavam atreladas ao dólar).

No início da década de 1970, na gestão do presidente Richard Nixon, o padrão-ouro foi abandonado e a conversibilidade do dólar americano em ouro foi suspensa. As taxas de câmbio entre a maioria das moedas passaram para o regime de câmbio flutuante com intervenções. Dessa forma, as moedas emitidas pelos Bancos Centrais de praticamente todos os países do mundo passaram a ser fiduciárias (baseadas em confiança/fidúcia), sem lastro metálico e de curso legal. A oferta de moeda passou, consequentemente, a ser uma decisão das autoridades monetárias (ou de forma simplificada, dos Bancos Centrais soberanos), e o limite à emissão de moeda deixou de ter qualquer associação com os estoques de ouro, prata, ou qualquer outro tipo de lastro.

O início do século XXI foi caracterizado pela ascensão da microeletrônica, da tecnologia da informação e da internet. Paralelamente, o setor de telecomunicações também foi alvo de importantes avanços, principalmente com a evolução da tecnologia de telefonia móvel e dos aparelhos celulares. A combinação dos recursos de telefonia móvel com sistemas computacionais e a possibilidade de acesso à internet levou a popularização dos chamados smartphones. Enquanto a tecnologia avançava, o mundo enfrentou uma das mais graves crises da história econômica recente, a Crise Financeira Internacional de 2008. Originada principalmente a partir do mercado imobiliário e da criação de uma série de produtos financeiros associados às hipotecas, a crise se alastrou por praticamente todo o sistema financeiro e bancário dos Estados Unidos, afetando principalmente grandes bancos de investimento. Posteriormente, os efeitos da crise expandiram-se para empresas não ligadas ao setor financeiro e para outros países, gerando o potencial de desestabilizar a economia mundial.

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Principalmente a partir das respostas dos Bancos Centrais à Crise de 2008, o início da segunda década do século XXI foi marcado por uma grande expansão na liquidez internacional (quantidade de moeda em circulação). Adicionalmente, os Bancos Centrais passaram a intervir de forma mais acentuada nos mercados financeiros, principalmente com o objetivo de estimular o crescimento das economias avançadas, já que a inflação não se apresentava como uma questão preocupante. Assim, instrumentos não convencionais de política monetária passaram a ser amplamente utilizados, destacando-se as taxas de juros extremamente baixas (por vezes até mesmo em território nominal negativo), a expansão dos balanços dos Bancos Centrais e os programas de compras de ativos financeiros (como o Asset Purchase Programme do Banco Central Europeu), o controle da curva a termo (yield curve control) e o modelo de comunicação baseado na prescrição futura (forward guidance). O comportamento dos Bancos Centrais das economias avançadas passou a preocupar grande parte dos investidores e dos participantes do mercado financeiro, principalmente em função da forte elevação na quantidade de moeda em circulação, das taxas de juros muito baixas e do crescimento nos níveis de endividamento público. Tal situação tornou-se ainda mais intensa após a eclosão da crise decorrente da pandemia de Covid-19.

Nesse contexto, a possibilidade da efetivação de transações financeiras via internet, a partir da tecnologia denominada blockchain, passou a ganhar espaço, especialmente no início da segunda década do século XXI. O blockchain é uma das diversas configurações possíveis de um conjunto mais amplo de tecnologias denominado DLT (Distributed Ledger Technology). A tecnologia DLT está associada à contabilidade distribuída, isto é, uma espécie de livro contábil compartilhado por um grande número de verificadores. Principalmente a partir da “criptomoeda” denominada Bitcoin e da tecnologia blockchain, a possibilidade de um sistema de transferência de valores absolutamente descentralizado passou a ser discutida e conhecida por um número cada vez maior de indivíduos. Uma das diferenças essenciais entre o Bitcoin e as moedas emitidas por Bancos Centrais soberanos é o fato de o Bitcoin ser emitido de forma descentralizada, isto é, não existe uma instituição, empresa ou governo responsável pela emissão do ativo. O ativo é “criado” a partir do processo conhecido como “mineração”, que consiste na utilização de computadores dedicados à solução de problemas matemáticos e à validação das transações realizadas com Bitcoins. Nesse sentido é possível a comparação entre o Bitcoin e os metais preciosos, visto que em ambos os casos não há uma instituição responsável pela criação do ativo e existe a percepção de que a quantidade total de ativos disponíveis é finita, trazendo o atributo da escassez como um dos fundamentos geradores de valor.

Apesar de bem-sucedido como inovação tecnológica e ativo financeiro, o Bitcoin ainda não se estabeleceu como moeda, apesar de esse possivelmente ter sido o objetivo principal de sua criação. As criptomoedas , em geral, têm grande potencial para modificar futuramente os sistemas de pagamentos e os mercados financeiros, mas ainda não podem ser consideradas moedas no sentido estabelecido pela teoria monetária padrão. Isso porque uma moeda, segundo tal teoria, precisa apresentar pelo menos três funções: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. Meio de troca consiste na capacidade da moeda de liquidar transações, isto é, a moeda precisa ser largamente aceita em troca da aquisição de bens e serviços. Reserva de valor é a propriedade da moeda de preservar o seu poder de compra durante o tempo, ainda que alguma perda seja natural em função da inflação. Finalmente, a unidade de conta significa que os preços dos bens e serviços são medidos em moeda corrente. Atualmente as criptomoedas não atendem a esses três critérios, principalmente em função da elevada volatilidade de seus preços e das dificuldades operacionais das transações diretas.

Não obstante, as criptomoedas atualmente vêm ganhando atenção crescente de investidores, instituições financeiras, fundos de investimento e da própria mídia. Novos projetos e tecnologias surgem diariamente e a quantidade de criptomoedas em funcionamento apresenta franca elevação, apesar de nem todas serem baseadas na tecnologia blockchain e na descentralização. A combinação do cenário de forte expansão na base monetária da maioria das economias avançadas, intensificada após a Crise do Covid-19, com a ampliação do interesse nas criptomoedas, trouxeram ao debate questionamentos sobre o futuro das moedas gerenciadas por autoridades monetárias estatais. Diante desse contexto, os Bancos Centrais estão direcionando sua atenção para pelo menos duas questões associadas a esse tema: a possibilidade de regulamentação das criptomoedas e a criação de moedas digitais gerenciadas pelos Bancos Centrais (CBDC – Central Bank Digital Currency ou MDBC – Moedas Digitais dos Bancos Centrais).

Em geral, considera-se que uma das principais características de uma criptomoeda é a emissão descentralizada, isto é, a moeda não é emitida por uma instituição, autoridade ou um governo específico. Assim, as moedas digitais emitidas pelos Bancos Centrais (CBDC – Central Bank Digital Currency) são conceitualmente diferentes das criptomoedas, já que como o próprio nome indica, são emitidas por uma autoridade monetária, o Banco Central. No entanto, diferentemente das transações eletrônicas bancárias atuais (como o Pix e a TED, por exemplo), as CBDCs poderiam ser transacionadas diretamente entre dois indivíduos em um sistema aberto como a internet, sem a necessidade de validação de um terceiro (como o sistema bancário), já que as transações são protegidas por criptografia. Nesse caso, as transações também são denominadas peer-to-peer (algo como “de ponta a ponta”), ou seja, a transação ocorre diretamente entre os participantes, sem a necessidade de um intermediário validador.

Dessa forma, podemos compreender as CBDCs como um conceito que se encontra no meio-termo entre as transações eletrônicas internas ao sistema bancário e as criptomoedas. Por um lado, as CBDCs seriam emitidas por uma autoridade ligada ao Estado nacional, e sua garantia de valor estaria associada a essa característica, assim como as atuais moedas de curso legal. Por outro lado, as CBDCs poderiam ser transacionadas fora do sistema bancário, o que as aproximaria das criptomoedas, que são transacionadas diretamente na internet, protegidas por criptografia. As CBDCs podem ser compreendidas como uma versão eletrônica do papel-moeda ou da moeda metálica. O ponto fundamental aqui é que, assim como o papel-moeda, as CBDCs poderiam ser transacionadas diretamente entre as partes da negociação, sem a necessidade de intermediação de instituições financeiras ou de pagamentos.


A tabela abaixo apresenta as características que diferenciam a moeda física (cédulas e moedas), as transações eletrônicas com os depósitos à vista nos bancos comerciais (como o Pix e a TED) que ocorrem no sistema bancário atual, as CBDCs e as criptomoedas.