O Mundo Debaixo da Linha D'Água: Juros Negativos E O Que Representam

 | 27.06.2019 14:24

O mundo vê um estranho fenômeno se desenrolar nas telas dos terminais financeiros. Uma quantidade relevante de países oferece títulos com rendimento negativo (em termos nominais, bom frisar), ou seja, você empresta dinheiro para alguém e após algum tempo você recebe menos em termos monetários do que adiantou. Sem dúvida isso é contra intuitivo, afinal não há razão lógica aparente para isso uma vez que todo o sentido de alguém abrir mão da liquidez, ou seja, deixar de consumir hoje para poder consumir amanhã, deriva da possibilidade que esta renúncia no momento presente se traduza em valores monetários maiores à frente.

O fato é que isto tem ocorrido à larga e, segundo levantamento recente, só na Europa há um total de US$ 10 trilhões de títulos nesta situação que vencem até 2049. Para se ter uma ideia este valor é mais de 5 vezes o que a economia brasileira produz em um ano. Isto sem contar países como o Japão que tem uma dívida monstruosa também rendendo juros negativos.

Mas como isto acontece? Qual o sentido de uma anomalia deste tipo? Vamos dividir a resposta em alguns pontos para ajudar nesta tarefa de entender a falta de juízo global.

1) Seguro contra os bancos

Se os juros estão negativos não faz sentido emprestar, afinal se você deixar o dinheiro parado na conta corrente de um banco qualquer pelo menos este não perde valor. Já que o dinheiro está lá parado num banco isto implica dizer que este está seguro, certo? Errado. Se um banco quebrar todo o dinheiro tido como depósito à vista vira fumaça assim que o banco pegar fogo. A única forma de você ter garantia que seus recursos estejam blindados a incêndios e outros problemas é que seus recursos estejam aplicados em títulos de alguém que não quebre e aí entra o Estado.

Como os Estados Nacionais emitem a moeda que honram os títulos não há como este título não seja pago. Para ajudar o raciocínio vamos recorrer à um exemplo bem ao gosto de um economista. Imaginem que eu sou uma padaria. Se você me empresta algum dinheiro pode ser que eu não consiga pagar esta dívida caso meu negócio não vá bem, afinal as dívidas são canceladas através de meio circulante, ou seja, dinheiro. Agora, se minha dívida puder ser honrada em pães não teria por que eu não conseguir honrar este débito (tudo o mais constante).

O dinheiro é um monopólio do Estado contra a sociedade, só este produz a “mercadoria” que equaliza as demais e neste sentido nenhum Estado consegue quebrar em moeda local, basta mandar imprimir. O que pode ocorrer caso o Estado em questão gaste mais do que seria razoável é que o valor daquela mercadoria-dinheiro perde o valor como no mais acontece com qualquer mercadoria super produzida. O resultado em tese seria inflação, o que faria que os agentes procurem outras mercadorias para cumprir a função de moeda.

Vamos voltar neste ponto mais adiante, mas por ora cabe notar apenas que aplicar seus recursos num título que rende juros negativos em termos nominais é uma espécie de seguro contra o banco que você tem seus recursos aplicados.

Há, contudo, outras forças que criam esta situação peculiar no tecido econômico. Por mais contra intuitivo que isto possa parecer há como ganhar dinheiro, e muito, com a queda dos juros.

2) A diferença entre preço e taxa

Os juros na verdade são uma espécie de conta de chegada. Imaginem que eu vire para vocês e pergunte: daqui um ano pago para vocês R$ 100,00, quanto vocês me dão agora? Vamos supor que o valor que se ache seguro emprestar no momento atual seja R$ 90,00. Neste caso, ao final de um ano, você irá ganhar R$ 10,00, que representa uma taxa de juros de 11,11%, simplesmente a razão entre os 10 que você ganhou sobre os 90 que me adiantou. Vamos supor que amanhã eu repita a pergunta, mas que a situação amanhã esteja pior na economia, logo você não irá querer abrir mão de tanto dinheiro no presente para ver só daqui um ano. Vamos supor que que para receber R$ 100,00 em um ano, você esteja disposto a me dar apenas R$ 80,00. Neste caso a taxa de juros deste empréstimo não é mais 11,11%, mas sim 25% (20/80).

Reparem que o preço do título tem relação inversa à taxa de juros. Quando o preço era R$ 90,00, a taxa de juros era 11,11%, quando o preço caiu para R$ 80,00, esta taxa subiu para 25%.

Imagine agora que os juros estejam caindo no mundo inteiro. Nesta situação, o desejável é que você empreste o mais rápido possível seu dinheiro, afinal assim você vai comprar um título “barato” e toda vez que a taxa de juros cair o preço do título nas suas mãos sobe. Isto implica dizer que a queda dos juros força os investidores a títulos que rendam um valor fixo no seu vencimento (os meus R$ 100,00 no nosso exemplo).

Assim, a queda de juros pode render um bom dinheiro. Vamos agora avançar mais o raciocínio.

Imagine que você ache que a demanda por títulos vai ser tão grande, mas tão grande, que os próprios agentes vão levar os títulos acima do par, ou seja, há quem vai pagar por algo que vale R$ 100,00 mais que isso, por exemplo, R$ 110,00. Se você acredita nisso, não haveria porque não pagar você também acima do par, como, por exemplo, R$ 105,00.

Percebe? Em situações como a atual, os agentes não operam olhando a taxa de juros, o que estamos interessados é no preço do título e, neste exemplo, se o título valer 110 e você pagar 105, você ganhou 4,76%.

Vamos agora entender porque isto está acontecendo. Afinal, por qual motivo os Bancos Centrais conseguem colocar títulos com rendimentos negativos?

3) A disfuncionalidade da economia pós-2008

Apesar de as pessoas acreditarem que os Bancos Centrais controlam a taxa de juros básica, isso é apenas em parte verdade. Quando, por exemplo, o Banco Central do Brasil (BCB) anuncia que a taxa básica SELIC será de 6,5%, ele não determina que será de 6,5%, ele apenas anuncia que a meta será de 6,5%. Uma vez anunciada a meta, a mesa de mercado aberto do Banco Central tem que operar os títulos no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (também conhecido como SELIC) de tal sorte que a taxa chegue neste patamar.

Vamos supor que por algum motivo qualquer o Banco Central do Brasil queira colocar a SELIC amanhã em 1%. Será que ele consegue? Na verdade não, se não sair negócio neste patamar de 1%, ele – o BCB – não consegue coloca a taxa neste patamar. Sem contraparte não há negócio. Vale a máxima: se um não quer, dois não brigam.

Logo, se os juros são negativos na Europa, isso quer dizer que o Banco Central Europeu disse que vai pagar juros negativos e alguém do outro lado do balcão disse “ok”.

A razão para sair negócio em taxas negativas é derivado aos dois motivos que citei acima: o motivo precaução (um seguro contra os bancos) e o motivo especulação (ganhar na variação do preço do título). No entanto, isso ocorre por dois motivos adicionais.

O primeiro é que os Bancos Centrais nos países desenvolvidos fizeram massivos programas de emissão monetária via “relaxamentos quantitativos” (os famosos QEs). Não foi criado meio circulante de fato, apenas se deu crédito por meio eletrônico em favor das tesourarias dos bancos comerciais na tentativa de fazer pegar no tranco suas economias cambaleadas pela destruição de valor financeiro na hecatombe de 2008. O objetivo primário dessas emissões era manter o sistema bancário de pé, que poderia acabar em chamas se todos sacassem seus recursos ao mesmo tempo numa corrida bancária. O problema era sério, afinal, como todos os bancos tinham medo de emprestar para os outros bancos porque acreditavam que o outro podia quebrar, ninguém emprestava para ninguém, congelando assim o mercado interbancário.

Imaginem o caos no Brasil se o CDI explodisse de um dia para o outro. O sistema financeiro, não só o bancário, entraria em colapso. Nesta situação o FED, o BCE, o BoJ e tantos outros falaram no auge da balbúrdia do subprime: o interbancário sou eu!

O dinheiro jorrou farto nas tesourarias dos bancos na esperança que, aos poucos, essa montanha de crédito fosse encontrando espaço na economia real por assim dizer. O dinheiro iria animar o consumo e o investimento revertendo as feridas da crise imobiliária. O problema é que isso não aconteceu.

Os empresários e investidores não veem motivos para investir porque a atividade não está forte o suficiente que justifique tomar recursos novos. Os juros podem ser negativos, mas se você acredita que a atividade real vai render ainda menos não há razão para tomar dinheiro.

Este é o sentido radical dos juros nominais negativos: os capitais do mundo estão com medo do futuro e correram para debaixo da saia dos Tesouros Nacionais em busca de proteção.

Aqui cabe nos perguntar: qual é a solução para tal estado de coisas? Já que os empresários perderam a coragem de construir o futuro, a solução caberia aos estados nacionais, agora amplamente capitalizados (lembrem, os juros estão negativos, logo a sociedade está “dando” dinheiro para o governo) abrirem frentes de negócio e assim animar o empresariado através de gastos fiscais que direcionem a iniciativa privada.

No entanto, estamos num mundo sem líderes capazes de construir o futuro, pelo contrário até; os líderes das duas superpotências estão na verdade tentando um roubar os mercados dos outros sem com isso construir nada novo. O jogo é menos que soma zero, será de queda da atividade no final do dia, uma vez que falta de liderança implica em risco maiores e assim menor convicção com o futuro.

Se o dinheiro é a ponte que liga o presente com o futuro na medida em que são os valores monetários que balizam as decisões de investimento, o que estamos vivendo hoje é que a ponte está debaixo d´água do nosso lado da margem e apenas uma parte pode ser vista do outro lado do rio do tempo...

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